terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Quero ser um passarinho.

Uma vez eu disse para uma amiga minha. "Eu sinto inveja dos passarinhos quando os vejo voar." E sinto. Mas não é uma inveja avarenta, é uma inveja de que se eu voar eu darei de cara no chão. Porque eu vivo de chão, no chão, olhando pro ar...

A minha liberdade não é de natureza, é inventada.

sábado, 10 de outubro de 2009

Tristeza

Eu não sou da tristeza que fazem as pessoas cortarem seus pulsos, essa tristeza trágica. Catártica. Eu sou da tristeza latente que tornam as pessoas mais suaves.

domingo, 27 de setembro de 2009

. . . .

Estou cansado de escrever em blog. Pra quê serve, afinal? Para alguém me ler. Ler-me o quê? O que eu sinto. Ah, o que sinto. Ler, então, os sentimentos que derramaram no chão, e com alguma escrita muito sofrida, tenho que enxugar. Ler que um pombo cagou em mim e que eu, agora, me sinto sujo. Assim sempre me senti em relação ao amor: vários pombos cagaram em mim. Passei debaixo dos fios, e então a revoada com dor de barriga crítica fez o amor brotar em mim. Estou afogado nos silêncios, no silêncio da noite densa, no silêncio que separa um vagão do próximo, no silêncio que distancia dois destinos, e principalmente, no silêncio que aproxima as arestas opostas. Se eu realmente fosse espremer estes silêncios, daria um sumo de pontos, assim “. . . .” é nesse tempo que um passarinho faz seu vôo extraordinário, é nesse tempo que duas bocas se colam, se calam, se fecham para ir embora. É nesse tempo que os pombos cagam. É neste espaço entre dois pontos, neste silêncio, que o macaco se viu homem. Eu, entretanto, falo em códigos não na língua dos silêncios, apesar de eu, ter meus silêncios interiores.

Eu poderia ter começado assim. “Numa tarde tediosa, Camille, se viu diante do indecifrável. Havia fechado completamente a torneira, ela verificara isso, mas por algum motivo, ela continuava a pingar.” Eu continuo a pingar mesmo tendo fechado completamente a torneira. Pingando, pingando, pingando... A válvula trinca: não há mais para onde girar. Estaria eu e Camille, no limiar crítico da existência? NÃO PÁRA DE PINGAR! Sim, podemos estar. É uma possibilidade. Talvez o que eu preciso para não cair no precipício seja ligar para a polícia? É que o que eu preciso é de vento no cabelo. É da alma voando e do coração selvagem sem alguma permissão.

Não quero mais fazer pedidos, cansei. Afinal, estou tão cansado, que só um precipício me salvaria. Ou de mais um pombo, não sei. As simplicidades, como o silêncio ou o amor, são complexas, um sorriso ou um olhar, aparentemente complexos, transmite apenas aquilo, que é realmente complexo: um silêncio ou um amor... Por isso me sinto cansado, exausto, usaram as palavras como escudo e ela então vai perdendo seu cerne voluptuoso. Sua cara de meretriz despindo o cliente. Igualmente, não quero mais também os olhares, tenho um precipício à minha frente, que me ausenta de mim, e me deixa completamente sem querer.

Um olhar que assoprasse meus cabelos, talvez. Uma palavra dita que então faria se mover o vento e minha alma tão libertamente sufocada. Os silêncios estão pingando e não sei se devo enxugá-los, quero apenas deixá-los no chão, inundando a alma...

E talvez, uma gratuidade, falta gratuidade nas soluções. Dou-te um beijo porque te beijo agora. Te amo porque te amo e não haveria te amar de outra forma. Deixa-me um pouco no silêncio porque estou me purificando, estou me purificando por estar somente...

É que me sinto inabitado.

Camille pensou primeiro em chamar o encanador ou o vizinho, talvez aquilo fosse obra de um vazamento; até em um padre Camille pensou, caso fosse obra de alguma assombração, entretanto, a válvula no final e a torneira pingando era tão inexplicavelmente real, que ela decidiu abrir a torneira toda e lavar toda a louça.

sexta-feira, 31 de julho de 2009

Em coma.

Olho seu sorriso. E olhar-te é o pior que faço. É sina de metade coração partido e de metade coração selvagem. Meu coração selvagem faz-me desvendar cada olhar teu, e cada centímetro de teu sorriso, até a mesura dos modos, até a nobreza do gesto, a doçura das palavras e a candura do comportamento. Por trás do vestido, eu sei que existe um coração selvagem. Como o meu, que corre por todos os sentimentos, carregando consigo a fragrância de todas as aventuras, e o calo. Todo coração tem um calo – o calo de amar. Não sei se teu coração tem um calo, porque não sei se ele envolvera-se tanto neste ato, como eu. Como eu me mortifico.

Eu quero entregar-lhe minha liberdade – e também minha nudez. Você pode tomar meu corpo enquanto eu descanso? Sim, como um copo de refrigerante mesmo. Cansei das importâncias, e principalmente, do sagrado. Toma o que eu de mais sagrado tenho, o que é sagrado não me importa mais. Tudo do que sou feito é matéria efêmera, e tratar-me como um corpo eterno, é perder a simplicidade de viver. Toma minha carne e o significado de minha alma, essa essência. Coma meu corpo como se ele fosse um pedaço de carne. Porque ele é somente um pedaço de carne. E coma-me com amor para que tu possas sentir meu gosto. O fino gosto de quem te ama.

Você pode começar a me amar? Assim, espera o café ficar pronto. Porque café cheira a amor, e eu gostaria que começasse a me amar quando ele estivesse pronto. Não é por nada mais misterioso, é que eu gosto da presença da xícara de um café. O seu sorriso. Porque você sorri pra mim, de uma proximidade tão distante? Eu entendo o que você sente porque eu tenho um coração selvagem. Eu sei que ando distante, mas é que eu ando nu, e toda nudez cobre-se um manto sagrado. Eu tirei este manto para você.

Meu corpo nada mais é que um corpo. Anda, assopra o corpo como se houvesse café dentro da xícara. Anda, pegue o corpo pela alça, e beba logo este café antes que ele esfrie. E se puder, não beba-o de uma vez só, vá de gole em gole, que a temperatura nem arderá a tua língua, nem tuas palavras, sei que se importa com o que dizes, mas palavras são mentirosas, enquanto meu corpo é a sinceridade pura, é a minha nudez. O café não mente, é marrom, está quente quando está quente, e quando esfria é porque você não bebeu.

Teus olhos dizem as mais sinceras palavras de amor, tua boca, entretanto, nem por uma coragem, as diria. Porém eu lhe aplico uma tortura: meu amor. Sim, não se deixe levar pelo que eu visto, ainda vestido, eu me mantenho nu. Na sua frente. Para que o mundo, para sempre, se livre de um sentido, basta que você pegue na minha nudez. Ou menos ainda, uma palavra: fique. Uma palavra de um esforço inimaginável.

Não há mistério a não ser que você o crie. A não ser que você veja o mistério. Eu me olho e vejo o meu corpo nu. Por isso que não sou um mistério para mim. Eu me olho e vejo o meu amor, vejo que te amo. Você deve olhar-se, ver o teu amor, e em seguida, não entender nada. Mas não devemos entender nada, por isso que não entendes, não se deve entender, deve-se apenas ficar calado e comer o corpo. É antropofagia, canibalismo mesmo, o corpo é humano e comer é vital. Coma o corpo, mas com amor. Coma o amor com o corpo.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Uma rosa desabrochou.

Uma rosa desabrochou,
no meio da calçada,
e sem medo de nada,
ali continuou. - junto a ela eu pari.

Uma rosa desabrochou,
no meio da calçada,
e sem temer a nada,
nem a vida, nem a pisada,
ali se petrificou. - junto a ela eu fiquei.

Na rosa, uma pisada,
bem no meio da calçada,
mas sem temer o nada,
a ele, ela se foi. - junto a ela eu parti

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Por que.

Por que uma esperança?
Um gesto de amor,
esperado?
Por que o amor,
se não há escapatória,
por que a memória,
no aprendizado de amar?

por que a fé,
e por que ela nos assola,
sempre quando, fora,
hora,
de desacreditar?

por que a poesia,
neste momento de agora.
por que, estas palavras,
se tudo tanto,
se disforma?

por que no mundo, tanta medida,
se viver é tão imedido,
por que a idéia de finitude,
se tudo é tão infinito?

por que o amor,
e por que tanto se ensina?
Por que o amor.
Se o toque, não nos aproxima.

Tocou a face
mas alcançou o coração.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Recital

A leitura dos poemas vai perdendo o tom. “Rútilo ardor que por agora, emudece”. “Teu corpo junto ao meu / e que entre as sombras, emagrece.” A platéia, envolta em um olhar distante, paradisíaco, de pouco a pouco, volta à fria realidade. Na primeira mesa a filha do empresário, olha para mim, e fita, com olhar desconfiado. Na mesa ao lado, um jovem que me olha questionado; não sei se sou eu ou o amor. “Se tuas vestes estão no chão/ e se teu corpo tão cedo padece/ porque ainda, solidão?” A garçonete do bar, que até então estava parada, de súbito acorda do sono leve e volta a trabalhar. O homem solitário da mesa mais distante, que me parecia em pleno frenesi, volta ao seu copo d’água. A poesia se adensa.

“Ao procurar alguma luz/ sôfrega, que piscasse/ Eu encontrei a vazia escuridão./ E se na lembrança do teu beijo/ eu me afirmava/ também se apagava uma luz em mim.” Ouço ao fundo o som de uma voz, eu distraída entre o retrato preso na parede, em que uma criança faminta, poeticamente, decora o lugar, e a folha de papel; eu não percebi que duas pessoas conversavam. Dois executivos, vestidos de executivos, falavam quietamente, entre cada gole quente do café. “Que poesia linda... sabe quem a escreveu?” Ouvi o outro responder “Quer açúcar ou adoçante?” Sem a resposta o executivo colocou o adoçante e disse “Beba, senão esfriará.” Na mesa ao lado deles, duas senhoras bem vestidas, aparentemente felizes, e eu logo soube o porquê. A primeira levantara uma bolsa do chão, e tirara dela o lindo batom vermelho que comprara horas antes, com o espelho na mão se desenhava enquanto eu me definhava na leitura da poesia. A outra senhora, olhava faminta como a criança da foto, não menos feliz, no entanto, mais frustrada – o batom lindo não era dela. E nem poderia ser, ela então tirou da sua bolsa de compras uma ótima sombra, e com o espelho da amiga, devolvia a frustração para ela – assim o mundo se equilibra. Entre a sombra e o batom. O poema, lentamente sumia abafado no ar, o jovem que me assistia, agora sentia prazeres com um croissant.

Mas então, a poesia me chamava para aqueles agonizantes; que paralelamente viajavam, entre as lembranças do passado e as lembranças daquilo que nunca aconteceu, mas que se acontecesse, não seria a vida, seria apenas a releitura de um sonho. Quando fui sonhar com o teu beijo, embaixo do teto do meu quarto (veja, fui humilde com o cenário), sonhei que você me beijaria intransitivamente, e que no frenesi do toque, você me levaria ao íntimo sagrado; que após o beijo, nos olharíamos por fugidios instantes, que por tão curtos eu não poderia levá-los, posteriormente, na palma da minha mão. Eu tanto sonhei com este momento, e tudo estava tão humildemente arquitetado, que por um instante eu achei que te beijei...

Aos poucos vejo que não leio mais a poesia. De que me adiantou tanto sonhar com teus afagos? Com teu beijo quente? Com teus abraços? Do que me adiantou tanto arquitetar, se você jamais será algum desenho meu... e prosseguia. Às vezes eu queria te registrar, pôr uma ordem no que você realmente era, e no que você era para mim. Toda vez que tentei, essas duas realidades entravam em choque. Aos poucos, o que eu dizia nem poesia era mais. Vidrada na imagem do empresário, que ali está pelo café, e não por minhas palavras, eu via sua imagem quando eu abri a porta para ti. Eu te deixei entrar, gradativamente, como a chuva sempre se anuncia, mas sem a certeza de chover. Às vezes chove, às vezes pinga. Sem ter a intenção de te amar, eu fui te amando. Sem ter a intenção, eu fui querendo cada vez mais estar, cada vez estar mais dentro daquilo que você vivia, não até o ponto de eu me tornar o que você era, mas ao ponto de se tornar sua terceira metade. Eu queria me tornar sua terceira metade. A platéia assustou-se e todos aqueles que trabalhavam também voltaram-se a mim: aquilo não era mais poesia. Aquilo era o que eu estava dizendo. Não tinha forma de poesia, aquilo não era o que estava lendo. Parei de falar para olhar a todos, e todos estavam perplexos. No ar sobrara apenas o ruído de uma colher batendo na louça da xícara, conversas esparsas fora do bar, e agora que toda a atenção era minha, eu coloquei a poesia no meu colo, e continuei a recitar aquilo que era minha vida. Porque procuramos no outro a essência de nós mesmos? Eu estou perdida junto a meus cacos pelo chão...

terça-feira, 21 de abril de 2009

Décima quinta carta.

“Carlos, esta é a décima quinta carta que te escrevo. Sei que ainda não lhe enviei nenhuma, mas não se preocupe, as entregarei todas, mas entregarei como Deus entrega um presente: de pouco a pouco, mas nunca o todo de uma só vez.”

O barulho da torneira pingando vinha do banheiro. “Ah, mas também esse samba do vizinho...” Não gosto de sambas, já lhe disse? “Samba me faz suspirar de amor.” Anotou Jacques no papel que se fazia carta. “Escrevo-te pela pura simplicidade de que hoje não, mas que sempre, quis ter o barato luxo de ter alguém para escrever. Eu sei que profundamente escrevo para mim, e que a escrita é, senão, o que me torna possível para o mundo. Então quando finjo que escrevo para ti, contorno-me com suas mãos, porque ainda não estou preparado para olhar-me no espelho e me ver: inteligível como sou.” A torneira, assombrosamente, pingava mais forte e o samba agora falava de uma decepção amorosa tão aguda, mas tão profunda e afiada, que ruía até aqueles corações que abafam o som de sua própria batida, com o fim de dizer ao mundo “sou uma pessoa forte”. Jacques não resistiu e fechou a torneira, mas o samba era do vizinho, e toda aquela profundidade aguda continuava. “Até agora, a torneira estava pingando, mas por alguma força, ela começou a pingar mais forte. O primeiro que falasse algo, logo falaria em fantasmas, em força sobrenatural. Mas sim, acho que uma força sobrenatural age nesta casa, não um fantasma, ontem mesmo uma tesoura estava equilibrada em minha escrivaninha, e por algum motivo, ela caiu. Mas é que quando se está perturbado, Carlos, a perturbação passa para o ambiente...”

Da janela vinha uma brisa fria de fim de tarde, o sol se punha em vermelhos e laranjas, a luz que entrava vinha quente pelas cores e fria pela brisa, o samba agora diminuía seu volume, e o dia parecia entrar em um clímax frígido, no entanto, pulsante. Jacques tremia internamente preso a sua cadeira, entre a luz e a escuridão, enquanto escrevia sua décima quinta carta. “Carlos, permita-me que eu te escreva por mais um ano, até lá, eu já terei certeza de mim. O samba agora finalmente parou, e eu pararei por aqui. A noite se aproxima e eu tenho medo dela. Vou escutar uma música que nada me diz, beber um pouco de café, não sei... sei que ainda te escreverei por um tempo. Agora que a brisa passou, deixe-a movimentar os lençóis de outro alguém...”

“Mas de toda brisa finda, sobra sempre um rastro eterno.” Jacques rabiscara depois esta linha.

No dia seguinte, após a xícara de café amargo, após meio maço de cigarro, após o banho e o jornal, fora ao Correio entregar a bendita décima quinta carta que prometia tanto, tanto quanto as outras prometeram e para sempre prometerão. Na rua, as pessoas atarefadas, maquinizadas, parecem que nunca sofreram de amor, mas sofrem. Ao chegar, viu a fachada dos Correios, sentiu os pelos ouriçarem-se, o medo subia à boca, a vontade de desistir tomando a alma. Num botequim ao lado, tocava um samba. As pessoas maquinizadas deixando suas cartas. Suspirou e então entrou, mas quando se deu de frente com a caixa na qual deveria depositar a carta, deu meia-volta e foi embora.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

À Procura de uma Vida.

O céu poderia estar admiravelmente azul nesta tarde, mas não estava. A vida poderia estar inevitavelmente feliz, mas sobrou-lhe a angústia do que poderia ter vivido, e não viveu. As nuvens estavam amareladas, a nuvem de gás dos carros que passam lá fora desbotou o céu de hoje. O azul não cintilava e as nuvens não mais estavam iluminadas em branco, aquela tarde de verão estava febril, as paredes da fronte de sua casa estavam manchadas pelo tempo, sua casa já estava velha, assim como as rugas em seu rosto. A violeta balançava suavemente em cima da janela, agora que o vento decidiu aparecer. Nenhum passarinho no céu, ouvia-se apenas o ruído incompreensível de pessoas que passavam pelas ruas, uma vez ou outra, a buzina de um carro. O dia estava quente, o sol amarelava a cidade.

Na casa mais velha da vila, a violeta na janela, o cachorro que saía da varanda e debilmente ia deitar-se ao lado do sofá, em cima da mesa, tricô e agulhas, o ventilador no teto rangia, e a televisão sussurrava coisas inaudíveis. Os fantasmas da casa agora descansavam. A senhora já muito idosa debruçada na janela, seus cabelos brancos para trás, seu vestido de corte reto, seu chinelo de pano, na rua passavam agora dois casais de namorados, que se beijavam, acariciavam-se, o segundo, passou rindo de suas tolices particulares, abraçaram-se porque o amor nasce e morre no verão. A solidão é fruto do inverno, do vento frio, de tempos nublados. Olhava a senhora, então, angustiada, os casais que passavam. Os beijos úmidos, os abraços quentes, as carícias ternas, tudo isto atingia a velha em seu imo, em suas lembranças de todos os beijos que poderiam ter sido, e não foram. Lembrava-se que já esteve naquele lugar, porém agora, seus amantes são cinza que o vento assoprou para longe.

Atenta, percebe que da esquina, surge um grupo de crianças estridentes, conhecia a voz peculiar das crianças, era mais feliz, mais despreocupada, não se ouve o temor do próximo amanhecer, como se cada minuto fosse de crucial importância. As crianças corriam sem se preocupar com quem as visse. A gratuidade de correr incomodava-a. A felicidade gratuita das crianças, que agora passavam em frente ao portão principal, incomodava-a, de repente, na limitada moldura do portão principal, aparecera uma mulher mal-humorada, cabelos crespos, feia. Surgira com um pé de chinelo na mão que usava como instrumento de força, a felicidade gratuita incomoda aos mais infelizes. E as crianças, agora, seguiam de cabeça baixa, porém, até de cabeça baixa não conseguem esconder o seu sorriso. Da janela, a velha olha o dia.

O rangido monótono do ventilador, o cachorro fatigado deitado ao lado do sofá. Na mesa, duas agulhas grandes e linha de tricô rosa claro e azul claro. A televisão ligada na novela da tarde e mesmo com isto tudo – o silêncio. A violeta contorce-se toda; o vento apressa-se a entrar pela janela, invadindo a casa, perturbando seus fantasmas. O cachorro se encolhe, na televisão agora passam comerciais, o ventilador range mais forte, a senhora tosse – e o silêncio. Ela continua a olhar a vida lá fora, debruçada, agora não passa mais ninguém. Dentro de casa, tudo quieto, muito mudo. É meio-dia e o sol se vigora, o azul do céu se ilumina, mas a velha anoitecera por dentro.

Na calçada, agora, deita na sombra um cachorro doente e solitário. Vagarosamente, por cansaço e como se procurasse um canto para morrer, o cachorro carrega consigo várias cicatrizes na pele, muita fome, e desconsolação. A velha olha surpresa para o animal, e na sua última chance de felicidade – a velha late para chamar a atenção do cachorro. “Au, au, au, au” late a velha estridente. O dia quieto, a rua agora estava vazia, e ecoava pelo céu seu latido, como lembrança da angústia humana aos mais felizes. O seu cachorro desperta de seu descanso ao lado do sofá, mas limita-se a apenas olhar a velha desconfiadamente, como se perguntando por que a velha tanto se excedera, e volta a fechar os olhos. “Este cachorro mais parece um gato” a velha sempre resmungou.

No espaço sobrou apenas o eco do latido da velha. “Au au au au”. A angústia por não viver encontrou seu fim nos latidos da velha, que não se importou com quem a ouviria: precisava latir. Como que repetir para si mesma: ainda não morri. Como que gritar dentro de si: ainda posso gritar. Lá fora, o cachorro triste parou, procurou em volta de aonde vinha o latido e encontrou a velha. Olhou por uns instantes, seu débil olhar de quem não poderia dar atenção, a velha então viu que o cachorro a olhava e intensificou seu latido e sua penúria. Ele, então, por pena, desviou o olhar e continuou a mancar pela cidade.

Sobrou o silêncio. Ela logo parou de latir, decepcionada com o animal, com o mundo, fora abandonada até pelo cachorro manco e infeliz, engoliu mais uma vez, sua angústia. Voltou-se para a casa, para sua vida que pulsava como o incômodo gotejar de uma torneira. E ali estava, a violeta na janela, o cachorro deitado ao lado do sofá, o tricô na mesa, o ventilador rangente, a televisão ligada e a velha à procura de uma vida.