sexta-feira, 5 de junho de 2009

Recital

A leitura dos poemas vai perdendo o tom. “Rútilo ardor que por agora, emudece”. “Teu corpo junto ao meu / e que entre as sombras, emagrece.” A platéia, envolta em um olhar distante, paradisíaco, de pouco a pouco, volta à fria realidade. Na primeira mesa a filha do empresário, olha para mim, e fita, com olhar desconfiado. Na mesa ao lado, um jovem que me olha questionado; não sei se sou eu ou o amor. “Se tuas vestes estão no chão/ e se teu corpo tão cedo padece/ porque ainda, solidão?” A garçonete do bar, que até então estava parada, de súbito acorda do sono leve e volta a trabalhar. O homem solitário da mesa mais distante, que me parecia em pleno frenesi, volta ao seu copo d’água. A poesia se adensa.

“Ao procurar alguma luz/ sôfrega, que piscasse/ Eu encontrei a vazia escuridão./ E se na lembrança do teu beijo/ eu me afirmava/ também se apagava uma luz em mim.” Ouço ao fundo o som de uma voz, eu distraída entre o retrato preso na parede, em que uma criança faminta, poeticamente, decora o lugar, e a folha de papel; eu não percebi que duas pessoas conversavam. Dois executivos, vestidos de executivos, falavam quietamente, entre cada gole quente do café. “Que poesia linda... sabe quem a escreveu?” Ouvi o outro responder “Quer açúcar ou adoçante?” Sem a resposta o executivo colocou o adoçante e disse “Beba, senão esfriará.” Na mesa ao lado deles, duas senhoras bem vestidas, aparentemente felizes, e eu logo soube o porquê. A primeira levantara uma bolsa do chão, e tirara dela o lindo batom vermelho que comprara horas antes, com o espelho na mão se desenhava enquanto eu me definhava na leitura da poesia. A outra senhora, olhava faminta como a criança da foto, não menos feliz, no entanto, mais frustrada – o batom lindo não era dela. E nem poderia ser, ela então tirou da sua bolsa de compras uma ótima sombra, e com o espelho da amiga, devolvia a frustração para ela – assim o mundo se equilibra. Entre a sombra e o batom. O poema, lentamente sumia abafado no ar, o jovem que me assistia, agora sentia prazeres com um croissant.

Mas então, a poesia me chamava para aqueles agonizantes; que paralelamente viajavam, entre as lembranças do passado e as lembranças daquilo que nunca aconteceu, mas que se acontecesse, não seria a vida, seria apenas a releitura de um sonho. Quando fui sonhar com o teu beijo, embaixo do teto do meu quarto (veja, fui humilde com o cenário), sonhei que você me beijaria intransitivamente, e que no frenesi do toque, você me levaria ao íntimo sagrado; que após o beijo, nos olharíamos por fugidios instantes, que por tão curtos eu não poderia levá-los, posteriormente, na palma da minha mão. Eu tanto sonhei com este momento, e tudo estava tão humildemente arquitetado, que por um instante eu achei que te beijei...

Aos poucos vejo que não leio mais a poesia. De que me adiantou tanto sonhar com teus afagos? Com teu beijo quente? Com teus abraços? Do que me adiantou tanto arquitetar, se você jamais será algum desenho meu... e prosseguia. Às vezes eu queria te registrar, pôr uma ordem no que você realmente era, e no que você era para mim. Toda vez que tentei, essas duas realidades entravam em choque. Aos poucos, o que eu dizia nem poesia era mais. Vidrada na imagem do empresário, que ali está pelo café, e não por minhas palavras, eu via sua imagem quando eu abri a porta para ti. Eu te deixei entrar, gradativamente, como a chuva sempre se anuncia, mas sem a certeza de chover. Às vezes chove, às vezes pinga. Sem ter a intenção de te amar, eu fui te amando. Sem ter a intenção, eu fui querendo cada vez mais estar, cada vez estar mais dentro daquilo que você vivia, não até o ponto de eu me tornar o que você era, mas ao ponto de se tornar sua terceira metade. Eu queria me tornar sua terceira metade. A platéia assustou-se e todos aqueles que trabalhavam também voltaram-se a mim: aquilo não era mais poesia. Aquilo era o que eu estava dizendo. Não tinha forma de poesia, aquilo não era o que estava lendo. Parei de falar para olhar a todos, e todos estavam perplexos. No ar sobrara apenas o ruído de uma colher batendo na louça da xícara, conversas esparsas fora do bar, e agora que toda a atenção era minha, eu coloquei a poesia no meu colo, e continuei a recitar aquilo que era minha vida. Porque procuramos no outro a essência de nós mesmos? Eu estou perdida junto a meus cacos pelo chão...