A leitura dos poemas vai perdendo o tom. “Rútilo ardor que por agora, emudece”. “Teu corpo junto ao meu / e que entre as sombras, emagrece.” A platéia, envolta em um olhar distante, paradisíaco, de pouco a pouco, volta à fria realidade. Na primeira mesa a filha do empresário, olha para mim, e fita, com olhar desconfiado. Na mesa ao lado, um jovem que me olha questionado; não sei se sou eu ou o amor. “Se tuas vestes estão no chão/ e se teu corpo tão cedo padece/ porque ainda, solidão?” A garçonete do bar, que até então estava parada, de súbito acorda do sono leve e volta a trabalhar. O homem solitário da mesa mais distante, que me parecia em pleno frenesi, volta ao seu copo d’água. A poesia se adensa.
“Ao procurar alguma luz/ sôfrega, que piscasse/ Eu encontrei a vazia escuridão./ E se na lembrança do teu beijo/ eu me afirmava/ também se apagava uma luz em mim.” Ouço ao fundo o som de uma voz, eu distraída entre o retrato preso na parede, em que uma criança faminta, poeticamente, decora o lugar, e a folha de papel; eu não percebi que duas pessoas conversavam. Dois executivos, vestidos de executivos, falavam quietamente, entre cada gole quente do café. “Que poesia linda... sabe quem a escreveu?” Ouvi o outro responder “Quer açúcar ou adoçante?” Sem a resposta o executivo colocou o adoçante e disse “Beba, senão esfriará.” Na mesa ao lado deles, duas senhoras bem vestidas, aparentemente felizes, e eu logo soube o porquê. A primeira levantara uma bolsa do chão, e tirara dela o lindo batom vermelho que comprara horas antes, com o espelho na mão se desenhava enquanto eu me definhava na leitura da poesia. A outra senhora, olhava faminta como a criança da foto, não menos feliz, no entanto, mais frustrada – o batom lindo não era dela. E nem poderia ser, ela então tirou da sua bolsa de compras uma ótima sombra, e com o espelho da amiga, devolvia a frustração para ela – assim o mundo se equilibra. Entre a sombra e o batom. O poema, lentamente sumia abafado no ar, o jovem que me assistia, agora sentia prazeres com um croissant.
Mas então, a poesia me chamava para aqueles agonizantes; que paralelamente viajavam, entre as lembranças do passado e as lembranças daquilo que nunca aconteceu, mas que se acontecesse, não seria a vida, seria apenas a releitura de um sonho. Quando fui sonhar com o teu beijo, embaixo do teto do meu quarto (veja, fui humilde com o cenário), sonhei que você me beijaria intransitivamente, e que no frenesi do toque, você me levaria ao íntimo sagrado; que após o beijo, nos olharíamos por fugidios instantes, que por tão curtos eu não poderia levá-los, posteriormente, na palma da minha mão. Eu tanto sonhei com este momento, e tudo estava tão humildemente arquitetado, que por um instante eu achei que te beijei...
Aos poucos vejo que não leio mais a poesia. De que me adiantou tanto sonhar com teus afagos? Com teu beijo quente? Com teus abraços? Do que me adiantou tanto arquitetar, se você jamais será algum desenho meu... e prosseguia. Às vezes eu queria te registrar, pôr uma ordem no que você realmente era, e no que você era para mim. Toda vez que tentei, essas duas realidades entravam em choque. Aos poucos, o que eu dizia nem poesia era mais. Vidrada na imagem do empresário, que ali está pelo café, e não por minhas palavras, eu via sua imagem quando eu abri a porta para ti. Eu te deixei entrar, gradativamente, como a chuva sempre se anuncia, mas sem a certeza de chover. Às vezes chove, às vezes pinga. Sem ter a intenção de te amar, eu fui te amando. Sem ter a intenção, eu fui querendo cada vez mais estar, cada vez estar mais dentro daquilo que você vivia, não até o ponto de eu me tornar o que você era, mas ao ponto de se tornar sua terceira metade. Eu queria me tornar sua terceira metade. A platéia assustou-se e todos aqueles que trabalhavam também voltaram-se a mim: aquilo não era mais poesia. Aquilo era o que eu estava dizendo. Não tinha forma de poesia, aquilo não era o que estava lendo. Parei de falar para olhar a todos, e todos estavam perplexos. No ar sobrara apenas o ruído de uma colher batendo na louça da xícara, conversas esparsas fora do bar, e agora que toda a atenção era minha, eu coloquei a poesia no meu colo, e continuei a recitar aquilo que era minha vida. Porque procuramos no outro a essência de nós mesmos? Eu estou perdida junto a meus cacos pelo chão...
6 comentários:
O poeta é fingidor, ao certo. Talvez se não escrevesse poesia, sua vida estaria posta nas mãos de qualquer um. Poesia é para ser sentida, as palavras ao vento são para ser ouvidas e, talvez (não mais que talvez), serem entendidas. Prosei se queres ser ouvido, poetize se queres ser sentido.
Sei que não tem muito em comum com o texto, mas ele me fez refletir isso.
Babei no teu texto, Francisco. Babei.
Interessante trabalhar com os pensamentos e esperanças de alguém dessa forma.
É necessário falar. Falar o que sente, o que quer, o que queria;mesmo que você tenha de falar aos ventos, simplesmente fale.
Sua escrita me encanta, é envolvente e me deixa entorpecido de tanta magia e simplicidade.
Amei seu blog, amei suas palavras, amei seus textos.
Adorei esse texto! Você é muito talentoso, sabe lidar com as palavras. Gostei.
"Eu te deixei entrar, gradativamente, como a chuva sempre se anuncia, mas sem a certeza de chover. Às vezes chove, às vezes pinga. Sem ter a intenção de te amar, eu fui te amando."
CHICO.
"Prosei se queres ser ouvido, poetize se queres ser sentido."
GIUL.
Ahhhhh, mas ta um antro de amores e paixões escorrendo por aqui, hein!
AMO VOCESSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSS
Chico, o endereço do meu blog mudou! nao é mais tainarasantuchi, agora é devaneiosaparte.blogspot
Troca logo esse trem aí do seu, bem!
É interessante a forma como as palavras se mesclam e se isolam, como a poesia e a vida se fundem e se separam... E você pôs tudo isso nesse texto que transborda uma emoção tão racional e, oximoronicamente, crua, que é impossível não parar uns minutinhos para apreciar suas palavras...
Postar um comentário