terça-feira, 21 de abril de 2009

Décima quinta carta.

“Carlos, esta é a décima quinta carta que te escrevo. Sei que ainda não lhe enviei nenhuma, mas não se preocupe, as entregarei todas, mas entregarei como Deus entrega um presente: de pouco a pouco, mas nunca o todo de uma só vez.”

O barulho da torneira pingando vinha do banheiro. “Ah, mas também esse samba do vizinho...” Não gosto de sambas, já lhe disse? “Samba me faz suspirar de amor.” Anotou Jacques no papel que se fazia carta. “Escrevo-te pela pura simplicidade de que hoje não, mas que sempre, quis ter o barato luxo de ter alguém para escrever. Eu sei que profundamente escrevo para mim, e que a escrita é, senão, o que me torna possível para o mundo. Então quando finjo que escrevo para ti, contorno-me com suas mãos, porque ainda não estou preparado para olhar-me no espelho e me ver: inteligível como sou.” A torneira, assombrosamente, pingava mais forte e o samba agora falava de uma decepção amorosa tão aguda, mas tão profunda e afiada, que ruía até aqueles corações que abafam o som de sua própria batida, com o fim de dizer ao mundo “sou uma pessoa forte”. Jacques não resistiu e fechou a torneira, mas o samba era do vizinho, e toda aquela profundidade aguda continuava. “Até agora, a torneira estava pingando, mas por alguma força, ela começou a pingar mais forte. O primeiro que falasse algo, logo falaria em fantasmas, em força sobrenatural. Mas sim, acho que uma força sobrenatural age nesta casa, não um fantasma, ontem mesmo uma tesoura estava equilibrada em minha escrivaninha, e por algum motivo, ela caiu. Mas é que quando se está perturbado, Carlos, a perturbação passa para o ambiente...”

Da janela vinha uma brisa fria de fim de tarde, o sol se punha em vermelhos e laranjas, a luz que entrava vinha quente pelas cores e fria pela brisa, o samba agora diminuía seu volume, e o dia parecia entrar em um clímax frígido, no entanto, pulsante. Jacques tremia internamente preso a sua cadeira, entre a luz e a escuridão, enquanto escrevia sua décima quinta carta. “Carlos, permita-me que eu te escreva por mais um ano, até lá, eu já terei certeza de mim. O samba agora finalmente parou, e eu pararei por aqui. A noite se aproxima e eu tenho medo dela. Vou escutar uma música que nada me diz, beber um pouco de café, não sei... sei que ainda te escreverei por um tempo. Agora que a brisa passou, deixe-a movimentar os lençóis de outro alguém...”

“Mas de toda brisa finda, sobra sempre um rastro eterno.” Jacques rabiscara depois esta linha.

No dia seguinte, após a xícara de café amargo, após meio maço de cigarro, após o banho e o jornal, fora ao Correio entregar a bendita décima quinta carta que prometia tanto, tanto quanto as outras prometeram e para sempre prometerão. Na rua, as pessoas atarefadas, maquinizadas, parecem que nunca sofreram de amor, mas sofrem. Ao chegar, viu a fachada dos Correios, sentiu os pelos ouriçarem-se, o medo subia à boca, a vontade de desistir tomando a alma. Num botequim ao lado, tocava um samba. As pessoas maquinizadas deixando suas cartas. Suspirou e então entrou, mas quando se deu de frente com a caixa na qual deveria depositar a carta, deu meia-volta e foi embora.